Ano passado participei de uma live e criei este título para falar de uma experiência com a arte na educação infantil vivida no 1o semestre de 2021, nesta mesma partilha teve a apresentação de outro trabalho (Profa. Vanessa) do qual fui mentora no 2o semestre. Porém, gostaria de expandir essa discussão tão importante, já que em pleno 2022 ainda vemos práticas ultrapassadas como desenho para colorir, pontilhados, carimbo com mãos, receitas e tantas outras atividades chamadas de "arte", mas que revelam concepções que não representam um trabalho contemporâneo com arte e infância.
Trago uma breve reflexão sobre as concepções que estão envolvidas em proporcionar experiências com a arte, os bebês e as crianças. Acredito que o fazer deve ser guiado por essa concepção de criança:
"Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura." (DCNEI,2010, p.9).
O trabalho com a arte não está ligado a alfabetização, motricidade, ensino de cores por memorização, ensino de técnicas, produções com moldes ou explorações espontaneístas - mexer com tinta não é sinônimo de arte. Também observo práticas que estão em transição, mas acabam buscando as referências que estão na moda e caem novamente na reprodução de práticas, as fotos são lindas de ver, mas me pergunto:
será que fazem sentido?
será que tem uma escuta real?
será que o adulto tem clareza da intencionalidade?
será que estão centralizadas na criança?
O planejamento de uma experiência com a arte está longe da escolarização, onde a criança torna-se passiva, mera executora e não aprende pelo próprio desejo, curiosidade e imaginação. Confira esse breve vídeo da Stela Barbieri:
Vale deixar claro que precisamos sim de uma estrutura de qualidade, de boas condições de trabalho, mas ter um ateliê ou ter um material/mobiliário não garante uma ação pedagógica de qualidade, não adianta só ter, é preciso também SER e aqui entra a importância da formAção, ou seja, não é apenas ler um livro, é se colocar também em ação nas experiências com a arte.
Ser uma professora-pesquisadora é aceitar seu não saber e por isso investigar, buscar, descobrir, experimentar, refletir, escutar, provocar, observar, criar, apoiar, acolher, questionar...Ser uma professora presente, inteira no seu fazer, transgressora, que aprende junto com as crianças, tem consciência das suas intencionalidades, compreende seu papel no desenvolvimento integral de bebês e crianças. Não é simples! Implica formação artística e cultural, implica experimentar em seu próprio corpo (e se você tem preguiça de viver essas práticas nas formações ou não vê sentido é porque seu corpo e seu fazer já estão anestesiados). Essas vivências contribuem para o desenvolvimento da sensibilidade, do senso estético, da criatividade e da autoria docente.
Pelas minhas próprias experiências nas escolas das quais trabalhei tenho consciência de que o investimento na formação dos profissionais é ESSENCIAL: formações de qualidade, contextualizadas, não burocráticas, a longo prazo, com vivências e acompanhamento real de parceiros mais experientes. A dedicação, a seriedade, a qualidade e o comprometimento deve partir de todos os envolvidos com a educação.
Vamos pensar um pouco nas experiências que vivemos com a arte:
Quais foram as suas experiências com a arte na infância (dentro e fora da escola)? O que sentia prazer em fazer?
Quais são suas experiências hoje com a arte?
Está aberta a novos olhares? A repensar a prática?
Já teve a oportunidade de expressar seus pensamentos e/ou sentimentos por meio de múltiplas linguagens? Quais? Qual é a sua potência e pontos de atenção?
Já participou de alguma formação prática?
Você mantém uma relação com o sensível no cotidiano?
Seu espaço de trabalho gera algum encantamento em você? Existe um cuidado com a estética?
O que é arte para você? Quais são suas referências sobre arte?
Ninguém tira uma prática autoral e criativa do nada, requer um amplo repertório artístico, cultural, vivencial, estético. Depende de curiosidade, um desejo interno, é uma soma das experiências da sua vida, das relações que cria com o mundo, com a natureza, com a arte, com as pessoas, com sua história etc. Esse repertório individual docente articula-se com as experiências e os saberes das crianças, com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio da humanidade e se revela no planejamento.
Também é necessário estar alinhada aos princípios éticos, estéticos e políticos da DCNEI (Diretrizes Curriculares Nacionais da EI), tanto na sua postura/na relação com os bebês e crianças, quanto na escolha dos materiais, na composição dos espaços e dos tempos (logo vou escrever no blog). Portanto, estude e reflita sobre estes princípios e (re)veja a necessidade de desconstruir algumas práticas automatizadas:
a criança precisa ter liberdade e autonomia para escolher o que e como usar os materiais (sem ser abandono ou espontaneísmo);
desenhar, pintar, construir, modelar, dançar, brincar...sem preconceitos, não tem cor nem tema por gênero, é tudo para criança;
ofereça fotos reais como referência (seja da natureza, de lugares, de obras de arte etc), chega de desenho estereotipado! Pesquise como diversos artistas representam tal imagem ou busque livros ilustrados da literatura infantil e faça uma apreciação, pois não há um jeito único de representar;
trabalhar com datas comemorativas, lembrancinhas e decoração não representa o trabalho com arte e infância em uma perspectiva contemporânea;
ao comentar as produções das crianças fale sobre os elementos da linguagem oferecida, deixe de lado o feio e bonito, o certo e errado, no campo da arte isso é relativo, trata-se de experimentação, processo, conceito etc;
ofereça todo tipo de referências culturais, começando pelas que dialogam com o território, deixe um pouco de lado as referências eurocêntricas, fortaleça a cultura dos povos originários, dialogue com os artistas da comunidade;
não há uma única forma de desenhar, cada criança precisa ser respeitada e valorizada na sua singularidade, as expressões são múltiplas. A arte nos ensina sobre isso;
a arte e a cultura fazem parte da construção da identidade das crianças, portanto temos a responsabilidade de não reproduzir o padrão e reforçar estereótipos, preconceitos e desigualdades. Disponibilize referências que respeitam, acolhem e valorizam a diversidade;
os bebês e as crianças têm o direito a participar das propostas, seja na tomada de decisões ou pela escuta e observação materializada no planejamento que leva em consideração experiências que fazem sentido;
todas as crianças precisam ser legitimadas, valorizadas, acolhidas em suas expressões, vivendo experiências e relações positivas para seu desenvolvimento;
não crie expectativas sob as produções das crianças, o que vale é o processo, é como a criança interage com a proposta e não a produtividade. Se o resultado for homogêneo não foi uma experiência significativa. A infância é plural;
no trabalho com arte e infância temos referências e inspirações para criarmos as práticas, não moldes ou cópias para seguir passo a passo;
bebês e crianças têm uma poética que muitos de nós adultos a perdemos, cultive a sensibilidade, admire o pequenos, surpreenda-se, permita-se encantar e descobrirá o valor do sensível nas interações e brincadeiras, as crianças são grande fonte de inspiração;
há muitas linguagens da arte, extrapole-as ao invés de fragmentar, articule-as e use todos os sentidos, todo o corpo;
diversifique os materiais, mas lembre-se o mais importante é criar intimidade com eles, aprofundar os saberes e não oferecer uma linguagem por dia ou uma 'técnica' por semana;
na educação infantil não ensinamos técnica, a técnica pode estar presente nos processos, o mais importante é que a professora tenha clareza dos processos criativos dos artistas que se inspirou para contribuir com os processos das crianças;
arte na educação infantil não é você ser "criativa" no sentido de oferecer muitas propostas diversificadas - ver ideias nas redes sociais ou em um curso e aplicar, isso não é ser criativa, é ser reprodutora;
releitura de obras de arte não é cópia, é só ver como artistas fazem releituras de obras de outros artistas;
abandone a arte escolarizada, ela é contrária a criatividade, a curiosidade, o brilho nos olhos, a imaginação, o pensamento, a vontade de aprender, a alegria de fazer por si mesma;
o tempo precisa ser flexível, as crianças têm diferentes ritmos, não dá para arte ter a lógica do relógio, a 'hora' da criação;
as paredes precisam ser habitadas com as marcas, produções e documentações dos processos das crianças, não dá mais para aceitar muros cheios de personagens e bichinhos fofinhos;
a produção é de autoria da criança, não tem a mão do adulto para dar uma "ajuda", é dela, ela faz do jeito dela;
um portfólio cheio de produção em folhas A4 e A3 revela a concepção de arte da professora, ou seja, "trabalhinhos" para mostrar serviço, eficiência ou prestar contas às famílias;
a arte exige liberdade, abertura ao imprevisto e olhar poético;
silencie um pouco, pare de perguntar o que as crianças estão fazendo, deixe-as compartilhar com você se fizer sentido para elas nomear sua criação. Pare de escrever o que ela desenhou em cima da produção, elas mudam de ideia de um momento para o outro, pare de ser invasiva;
não crie formas para as crianças se encaixarem, crie formas diversas de experimentar as linguagens da arte;
a arte também pode ser de autoria coletiva, trabalhar em colaboração é muito importante, é preciso ir além do individual e promover experiências de troca entre as crianças;
precisamos acompanhar e dialogar com a arte do nosso tempo, a arte contemporânea (as materialidades, as provocações, os questionamentos, os processos criativos, as pesquisas, as linguagens sem fronteira etc). E outros tantos aspectos que não cabem aqui...
Se você se vê nesse processo de transformação, o mais importante é estar aberta a aprender. Como já disse aqui no blog, eu mesma no início da minha carreira aprendi colar algodão na nuvem para o portfólio das crianças e ao começar a estudar mais, ter novas experiências, ver novas práticas, aprendi a refletir sobre a minha, um mundo se abriu e percebi que o trabalho com a educação infantil era bem diferente do que conhecia. Assim lancei-me a um percurso transformador. Então, acredite em você, em sua força e potência! Não desista, a gente erra, tenta, acerta, erra de novo e assim a vida segue em movimento. Cada experiência uma nova aprendizagem. Há algumas publicações no blog que podem contribuir: desenho, dança-desenho, literatura, investigações com papel, construção, ateliê.
A arte como criação, expressão e investigação singular da criança requer sentido, continuidade, aprofundamento, nutrição do percurso criativo (identificar as necessidades, os interesses, as pesquisas e as descobertas para criar possibilidades de expressão por múltiplas linguagens e com diversidade de materiais), ampliação das perguntas e experiências, escuta, observação e mediação. Não é apenas preparar o espaço e os materiais e deixar acontecer.
Quando há protagonismo e autoria docente, há protagonismo e autoria infantil! Cultive a originalidade!
Dica: comece estudando os livros de Anna Marie Holm, Stela Barbieri e Vea Vecchi. Pesquise artistas brasileiros e as manifestações da nossa cultura. Experimente desenhar, pintar, modelar, dançar, cantar, fotografar, tocar um instrumento, escrever uma poesia, criar uma colagem, bordar, costurar etc...investigue e misture as linguagens. Visite exposições, inscreva-se em ateliês de centros culturais, leia os textos das exposições, olhe com atenção, aprecie apresentações artísticas...enfim...envolva-se com o corpo todo, liberte-se!
Entre as próximas publicações, pretendo compartilhar na íntegra o projeto que apresentei na live citada no início do texto.
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Saiba mais...
Texto do blog sobre uma prática premiada pela RME-SP: Fazer o quê depois de pintar?