Por Marcela Chanan
Parece um tema ultrapassado, porém a prática de decorar as paredes das salas, os muros e os demais espaços das unidades de educação infantil ainda se mostra muito presente. É comum que professores(as) queiram "dar vida" aos espaços enfeitando com personagens, móbiles, cores vibrantes, adesivo estampado, E.V.A e outras imagens criadas pelas mãos dos adultos para agradar as crianças e criar um "ambiente lúdico". E a partir disso acho importante refletirmos sobre:
De onde vem esta necessidade do adulto?
Qual a imagem de criança essa prática reforça?
A escola valoriza os processos das crianças?
O que é um ambiente lúdico?
Somos seres históricos, criados a partir de um determinado momento, com determinadas referências, portanto a prática de decorar as salas e os espaços da educação infantil vem da nossa infância, práticas que vivenciamos e construíram nossa imagem de escola da infância. Lembro bem da minha experiência na pré-escola: modelos, moldes, desenhos prontos para pintar da cor 'certa', lembrancinhas com passo-a-passo, receitas de como fazer um brinquedo, murais floridos, escola enfeitada, tudo colorido.
Aos 4 anos de idade, já não gostava de nada disto, minha maior felicidade era fazer desenhos com lápis grafite em papéis pequenos e colocar entre as páginas dos livros que minha mãe lia para fazer surpresa, também foi muito marcante um bloco de papel com gramatura mais grossa e uma caixa de tinta guache que pedi para ela comprar: fazia minhas pinturas em casa, com liberdade e criatividade, isso sim era prazeroso! No entanto, foi com essa concepção mais tradicional que me deparei na minha primeira experiência como estagiária de pedagogia, me lembro de colar algodão nos desenhos de nuvens com as crianças. Isso porque não conhecia outras referências, ao começar a estudar mais, ter novas experiências, ver novas práticas e aprender refletir sobre a minha, um mundo se abriu e percebi que o trabalho com a educação infantil era bem diferente do que conhecia. Assim lancei-me a um percurso transformador.
*Fotos do arquivo pessoal Marcela Chanan – minhas práticas, São Paulo, 2010, 2013 e 2014.
Como citei anteriormente, a imagem de criança que carregamos vem da nossa infância, da nossa história pessoal. É ela quem dirige nossas ações, atitudes e escolhas. Ao longo dos anos essa concepção se transformou: de mini adultos, tábulas rasas, reprodutoras de cultura, algo que virão a ser; à criança protagonista, potente e criativa. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, a concepção de criança é a seguinte:
Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura.
Mesmo com essa concepção, carregamos aquela imagem de criança que tem a ver com as nossas vivências. Se não aceitarmos a reflexão e a abertura para a transformação, continuaremos a decorar e infantilizar a escola como se fosse um buffet infantil, um espaço de recreação ou mesmo um espaço assistencial como já foi. A escola de educação infantil, os centros de educação infantil, são espaços educativos, tudo precisa ter um fundamento para além de "as crianças gostam".
A concepção de criança da DCNEI, deixa claro que o bebê/a criança é ativa, não é um ser passivo, elas constroem conhecimento, pesquisam, produzem cultura e são protagonistas, não são tábulas rasas onde inserimos o que desejamos ensinar. Estamos no século XXI, de qual crianças estamos falando? Existem leis e diversos documentos que protegem-nas e dão à elas direitos civis, humanos, sociais e pedagógicos: Constituição Federal, ECA, LDB, Convenção dos Direitos das Crianças, Marco Legal da Primeira Infância, DCNEI, BNCC, dentre tantos outros.
É comum ouvir "Ah, mas é escola está sem vida sem decoração!", "Decoramos para acolher!", mas o que isso quer dizer? O que acolhe? O que dá vida a um espaço? Moldes, estereótipos e cores primárias? Será que nossa casa é cheia de cores, personagens, adesivo estampado, durex brilhante e móbiles? Acredito que não e se for, é exatamente porque a casa de cada um reflete os habitantes que moram nela. E a escola não é nossa casa, a escola é um espaço educativo onde bebês e crianças passam boa parte de suas vidas, o espaço é delas, é feita para e com elas.
Um espaço decorado pelas mãos dos adultos demonstra o quanto as crianças não são vistas, escutadas e valorizadas. Para além disso, personagens e estereótipos reforçam uma estética empobrecida, reforça o consumismo e uma forma única de representar e sempre com as mesmas cores - as primárias. Como uma criança vai ser criativa rodeada de referências engessadas? Não nutre em nada, é limitante e a prova disso é que mais tarde a gente se depara com crianças acima de 3 anos dizendo que não sabem desenhar, chorando e sofrendo porque não conseguem reproduzir o tal personagem, elas olham para o desenho delas e rasgam, amassam, pisam, jogam no lixo. É isso que queremos? É esse o papel da escola?
Receber as crianças com a escola em "branco", é permitir que construam e se sintam pertencentes, as paredes devem ser usadas para refletir os processos educativos vividos e essa prática colabora para a construção da identidade individual e de grupo, é algo muito sério. Um espaço em "branco" acolhe e torna visível as aprendizagens e tanto as crianças quanto as famílias e demais educadores podem acompanhar as pesquisas infantis, suas marcas e protagonismo. Se acha que a escola está muito vazia, coloque plantas, deixem as documentações de anos anteriores nas paredes dos espaços coletivos, são memórias da escola.
Não tem nada mais gostoso do que habitar o espaço com as crianças, aos poucos conforme a história do grupo vai acontecendo, as paredes são habitadas com registros diversos: fotografias, produções e textos. Estamos em um momento que estudamos tanto a abordagem da documentação pedagógica, vamos avançar, colocar nossas certezas em dúvida e nossas acomodações em movimento. Vamos estudar, correr atrás, colocar em prática o que dizemos que acreditamos, não vale ficar só no discurso, precisamos saber explicar nossas escolhas, a partir de fundamentos pedagógicos.
Dessa forma as paredes são cúmplices de uma educação infantil que respeita e acolhe as crianças, pois elas se transformam conforme o grupo se transforma. O ambiente promove a visibilidade dos processos de aprendizagem, a escolha dos materiais, a disposição de tudo que é colocado nos espaços, revelam a concepção e a identidade da escola: quando conhecemos um espaço educativo já conseguimos saber se teoria e prática estão alinhadas pela observação do ambiente.
Um ambiente lúdico não precisa de decoração, ludicidade não é cor e personagem. É um ambiente para brincar que aguça e nutre a imaginação/a fantasia pelas múltiplas linguagens promovendo diversas formas de expressão. Envolve a postura, a criatividade, a sensibilidade do(a) professor(a), é uma atitude lúdica. Quando o lúdico está presente os bebês e as crianças se mostram concentradas e inteiras nas experiências, ou seja, fez sentido, foi significativo.
Escola é lugar de diversidade, criatividade, singularidade, não de homogeneidade, é um espaço relacional e educador. Basta retornarmos aos princípios éticos, estéticos e políticos das DCNEI, as respostas estão lá.
Decoração não valoriza as produções das crianças, coloca o adulto como o detentor do saber, como se soubesse tudo que as crianças gostam!
Decoração não valoriza processo, valoriza resultado!
Decoração não valoriza criatividade, sensibilidade e expressão, valoriza cópia e homogeneidade!
Decoração não valoriza pensamento crítico, fornece estereótipos!
Decoração não valoriza a democracia, é o(a) professor(a) que faz e decide tudo!
Decoração não é inclusiva, não respeita as diferentes culturas, identidades e singularidades!
Se temos trajetórias diversas dentro de uma equipe pedagógica, é preciso estudos, união, vontade para a transformação acontecer em toda a escola: das paredes internas aos muros externos e chão, que também são cheios de estereótipos, cores primárias e personagens, como se a infância se resumisse a isso...sem diálogo nenhum com a realidade e as práticas culturais. Para que pintar uma amarelinha no chão ou uma pista de motoca? Deixe que as crianças imaginem, criem, desenhem! Essas pinturas limitam a criatividade e o uso dos espaços, apagam a infância, o efeito é contrário do que se acredita.
Você já parou para pensar por que professores(as) de educação infantil gostam tanto de reproduzir atividades? Por que gostam tanto de copiar, de receitas e passo-a-passo? Por que não paro de encontrar plágios dos meus textos do blog entre profissionais de educação (até com título de Mestre)? Por que tanta dificuldade em ter uma docência criativa, autoral, autônoma e protagonista?
Porque somos frutos dessa escola tradicional que não ensina a pensar, a criar, não promove autonomia, nem relações sadias.
Estamos em um momento de transformação, o conhecimento está acessível, livros em pdf gratuitos, universidades públicas e privadas com diversos eventos e cursos gratuitos, lives e mais lives, cursos com preços mais acessíveis ou descontos. Não dá mais para ignorar tudo isso e manter uma prática pedagógica tradicional que reproduz a mesma educação que tive há mais de 30 anos.
*Todos os direitos autorais das imagens e texto reservados para Marcela Chanan. É proibida sua cópia sem autorização prévia. O compartilhamento da publicação na íntegra diretamente do blog (link e via redes sociais) é livre. E para impressão é obrigatório colocar a referência.
Saiba mais...
Para complementar confira essa live do Ser Criança é Natural e Calore Ateliê sobre Formação Estética .
Assista a aula aberta do Paulo Fochi sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
Conheça o livro Homo Ludens de Johan Huizinga.
Livro Onde está a arte na infância? Stela Barbieri, capítulo 2: As paredes da escola falam?.
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