Por Marcela Chanan
No mês passado, publiquei um relato sobre vivências com a arte, mas antes das crianças entrarem em contato com os materiais artísticos, outros materiais são experenciados: os elementos da natureza! A arte primitiva é um exemplo que os primeiros materiais de arte do ser humano estão na natureza.
Seja na arte ou no brincar, pois os dois estão conectados, o contato com a natureza é fundamental.
O contexto desse relato é um espaço de educação não formal, que recebe diariamente um grupo de bebês e crianças pequenas no período da manhã. Me encantei com o quintal (terra, areia, água, pedras, àrvores frutíferas, etc) e tudo que acontecia ali tornou-se pesquisa diária.
O uso do quintal é espontâneo, inclusive nos dias frios e chuvosos (dentro de um limite que não seja prejudicial a saúde), cada criança no seu ritmo e da sua forma, seja pelo movimento ou pelas explorações conectam-se com a natureza. São livres em suas ações!
Um dia de chuva muito forte, sem quintal, é um dia agitado, cheio de tensões. Estar ao ar livre traz tranquilidade, fluidez e leveza.
O papel do educador, é observar, intervir no espaço (disponibilizar caixotes, tecidos e outros materiais, avisar sobre reparos) e mediar os momentos em que são solicitados pelos bebês ou crianças pequenas. Como é um grupo multietário de 1 a 4 anos, a mediação é necessária nos processos de interação e algumas vezes nos desafios corporais como:
aprender abrir e fechar a torneira (água de captação da chuva) para não desperdiçar;
receber apoio verbal e presencial nas explorações motoras (as crianças sobem onde conseguem por conta própria, não colocamos nenhuma criança em lugar mais alto do que ela consiga subir ou descer sozinha, observamos e estamos pertinho caso seja necessário, mas não seguramos para que subam ou pegamos no colo, quem tenta e não consegue oferecemos outros lugares para subir, algumas vezes tentam até desistirem, outras choram um tanto frustradas, é um processo importante de conscientização corporal, dos seus limites, tema do qual tratarei em uma próxima publicação);
aprender a olhar as frutas que caem das árvores se não tem bicho e se há necessidade de lavar ou mesmo aprender a colhê-las e ajudar (amora, pitanga, acerola, jabuticaba, cereja, caqui, romã, goiaba).
O adulto está sempre por perto, atento, disponível, inteiro no seu fazer, aberto ao imprevisto e em auto-observação (por exemplo, cuidar das próprias reações - exageradas - nas situações de queda ou no excesso de intervenção). Compartilha por meio de suas atitudes que aprecia a natureza (vai sentar no chão, tirar calçado, brincar na areia, no barro, com água), pesquisa, observa e valoriza a contemplação e o relaxamento.
Assim como consideramos o espaço como educador, a natureza também é educadora com sua riqueza de materialidades, sensorialidades e plasticidade. É fonte de conhecimento e fornece múltiplas linguagens!
Quando pensamos no brincar ao ar livre, precisamos incluir os bebês, eles são capazes e têm o direito a experiências fora da sala. Eles conhecem o mundo pela boca, então é comum experimentarem um pouco de pedra, areia, terra e logo perceberem que não é bom. Estão o tempo todo aprendendo e pesquisando, é um modo natural de existência, a origem da curiosidade humana!
Pude observar que depois do 1 ano completo o interesse pelo quintal foi maior, antes os bebês (de 7 a 12 meses) tiveram o contato com os elementos da natureza em uma varanda ou no salão, de forma exploratória e sensorial. Talvez porque estar no quintal demanda primeiro o estabelecimento do vínculo com o adulto, depois desafios corporais, diversas sensações e outras crianças em ação; o quintal chega como um novo mundo e são todas essas informações de uma vez para lidar.
Para algumas crianças colocar os pés na areia, na terra ou na água, é uma aprendizagem importante, pois veem como sujeira ou estranham a sensação.
Elas se mostram com diferentes interesses: algumas permanecem por longo tempo, na areia, no balanço, no trepa-trepa, nas árvores, nas escadas de escalada, na casinha; outras investem no barro, na água, nas frutas ou transitam por todo ambiente. Essas pesquisas individuais se transformam com o tempo, das sensações, para os desafios corporais, para as relações, para criação de brincadeiras, etc.
No cotidiano com a natureza os bebês e as crianças pequenas cuidam do quintal, observam insetos, ouvem os pássaros, sentem o vento, ouvem os sons das plantas balançarem, reparam se está sol ou nublado, se vem chuva, percebem a passagem do tempo, regam, plantam, colhem, comem, refletem sobre a vida e a morte (de insetos e plantas) desenham com graveto na terra, brincam nas poças, compartilham suas descobertas, fazem bolos e comidinhas, cachoeiras, caminhos de água, misturas, pista de carro...tantas explorações potentes, criativas e primordiais! Observam as transformações das plantas e árvores de acordo com a estação, as cores, a estética e também participam do ritual de cuidados e respeito para acender fogueira, na qual nos reunimos para cantar, tocar instrumentos e ouvir histórias.
Certo dia, um menino de 2 anos me chamou, apontou para essa pitanga e disse "Alguém matou ela!", eu observava a cena e antes dele me chamar viu outra criança pisar na frutinha.
Não são raros os momentos de silêncio, cada criança envolvida e concentrada na sua exploração. É um brincar orgânico e vital!
Esse cenário natural possui uma diversidade grande de sons, ritmos, padrões naturais, linhas, formas, cores, texturas, cheiros e temperaturas; experimentam a coordenação grossa e fina, a percepção espacial e até as relações consigo mesmo (emoções e sentimentos) e com o outro (interações). Cria-se uma sintonia com a natureza e a criança aprende a explorá-la a partir de suas experiências.
Estar ao ar livre traz mais vida para o cotidiano, aguça a curiosidade, abre possibilidades, relações e invenções. A criança aprende a partir das suas próprias iniciativas e a interação com diferentes idades é fonte de aprendizagem, a partir da imitação dos gestos. A criança cria uma relação de que ela faz parte desse ambiente e consequentemente aprende a respeitar e a amar animais e plantas. Já para os educadores o desafio é sair do controle, lidar com o inesperado, o imprevisível e descentralizar a sua figura do adulto.
É comum observar momentos de descanso e contemplação: seja em um cantinho, na rede, na casinha, uma cabana, debaixo de uma árvore ou mesmo em cima dela. A criança incorpora um repertório de experiências, de conhecimento, sobre a natureza e em certo momento já sabe exatamente o que ela quer fazer e como, ampliando seus saberes cada vez que se depara com um espaço natural.
O desenvolvimento motor ganha agilidade, coordenação, equilíbrio e prudência: sobem, descem, correm, penduram, balançam. Precisam lidar com um terreno íngreme, com pedras, madeira e outros obstáculos. Os perigos existem, são benéficos e reais, são da vida. A natureza cura não traz enfermidade, viver é perigoso!
Quando a criança se desafia, ela se conhece melhor, aprende quais são seus limites, o corpo se mostra mais preparado devido essas vivências de quedas, tropeços, frustrações, tentativas, acertos e erros. Com uma certa bagagem de experiências ela pode avaliar suas próprias ações e fortalecer o sentimento de confiança e capacidade em si mesma ao invés de desistir antes de tentar. Vamos sempre considerar riscos possíveis, dentro de uma consequência pequena, refletir em equipe o que é aceitável e o que não é, e debater sobre a necessidade desses desafios.
Confira esses vídeos maravilhosos do Instituto Alana para ajudar nessa reflexão:
Quando o risco vale a pena https://www.youtube.com/watch?v=DCULd07RzpQ
A criança que se sente capaz https://www.youtube.com/watch?v=viEiCB5zFGM
O contato com a natureza na infância está garantido em diversos documentos oficiais:
Indicadores de Qualidade na Educação Infantil (2009)
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (2010)
Currículo Integrador da Infância Paulistana (2015)
Base Nacional Curricular Comum para Educação Infantil (2018)
Currículo da Cidade de SP (2019)
Já pensou nas suas memórias de infância?
Provavelmente, retomará o quão próxima da natureza viveu, que era prazeroso, cheio de histórias, criatividade, liberdade...
Me lembro da EMEI que frequentava, tinha um quintal imenso cheio de árvores, com trepa-trepa, balanço, gira-gira e gangorra; quantas vezes já fui engessada (tornozelo, pulso, cotovelo) e quantas cicatrizes de tombo tenho na testa e no joelho! Quantas férias vivi com meus primos e primas em Londrina no meio da natureza! Aqui em SP na casa do meu tio em Diadema, um terreno enorme com muita natureza e galinhas, fazíamos fogueira, corrida de tatu bolinha e aventuras em um terreno ao lado com galochas em meio a muita lama (para nós areia movediça), brincar descalço e tomar banho de chuva (no concreto mesmo) era outra maravilha aqui na cidade de SP, tanta coisa boa!
Então vamos tirar os bebês das salas, brincar com água, terra, barro! Vamos criar possibilidades no nosso território!
*Parte dessa experiência participou do ciclo de lives Chá da Tarde 202, uma ação da Ana Carol Thomé do Ser criança é natural, confira a live e o ebook (pág. 37) com um outro relato e tantas outras maravilhas.
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Para saber mais...
Texto de minha autoria Educação infantil, natureza e o retorno a jornada presencial
Texto de minha autoria Bebês e natureza
Vídeo Criança e Natureza
Vídeo Verdejando o aprender
PDF de livro Desemparedamento da infância
Texto O que acontece quando os espaços escolares ganham mais diversidade, mais vida?
Texto do blog O tanque de areia e o direito de brincar